Bully

É quase certo que nunca esquecemos alguns cheiros. De repente você sente um perfume conhecido e volta trinta anos no tempo para um dia que pode ser bom ou não.

 

Com os sons, a coisa se procede da mesma maneira. Você pode ouvir latidos por aí todos os dias, mas o que importa? São apenas latidos. Só que daí você ouve aquele latido, igualzinho o som que saía da boca espumosa daquele doberman que dilacerou parte do seu braço quando você tinha nove aninhos.

Então você treme, um mal estar sobe pela sua cabeça e você só quer correr pra longe. Bem longe. E você sabe que isso é estupidez, porque não há maneira de você escapar da sua própria mente.

Você pode se drogar, é claro. Mas é uma fuga estúpida e passageira e só vai fazer com que você se sinta pior. Você não quer admitir, de forma alguma, que se tornou uma pessoa pior por alguma coisa do passado. Você deseja de todo o coração acreditar que tudo isso passou. É, você superou, és um vencedor e passado e passado.

“Passado é passado”.

Tem gente estúpida que ainda acredita nisso.

 

 

Diego Gianni

Bully

 

Quantos despertadores tocam por dia? É uma pergunta retórica, obviamente, pois não há como saber. Mesmo se reduzirmos as estatísticas para uma cidade – uma pequena cidade -, ainda assim, como sequer supor?

Fato é que, quando copernicamente a Terra se pôs na manhã de 17 de fevereiro de um ano próximo, dois despertadores cantaram em Curitiba. Não foram somente os dois, mas são os dois que importam para esta história triste...

 

Mas que lástima, que coisa enfadonha é quando o escritor se mete com a história e de antemão anuncia se ela é ou não triste. Se assim o faço, é porque aqui não há pretensão de causar suspense. Mesmo o final, meus queridos, é um tanto evidente. O título americanizado já diz tudo, creio eu. Passaram a usar esse termo recentemente, e pelo que sei, bully quer dizer “valentão”.

Oras, mas o mundo está cheio de valentões, não concordam?! E o sofrimento causado por eles não é nenhuma novidade. É a contragosto que uso essa palavra inglesa que muito em breve se tornará um clichê. Vão banalizar, como sempre banalizam.

A dor sempre é banalizada, então deixo essas palavras numa linha à parte.

Daqui me retiro da história e prometo não mais interromper. Meu papel é apenas o de contar.

Em ambos os cantos da cidade, os despertadores foram mal recebidos pelos ouvidos mais próximos.

Não seria esta a etimologia da palavra?

 

Despertador...Desperta...Dor.

Despertar para a dor?

 

Não seria justo dizer que sim, já que só pessoas tristes e com medo sofrem na hora de despertar. Mas quando assim é, que difícil é colocar os pés no chão, escovar os dentes, pentear o cabelo, vestir as meias, enfim, se aprontar para sair.

Muitos dariam um braço para não precisa sair, conquanto outros dariam a vida para poder sair, da prisão, da cama do hospital, de qualquer lugar que não fosse a própria mente – que como já mencionado, é a verdadeira masmorra sem escapatória.

No ouvido de um, o som estridente do despertador deu muito medo. Dor de barriga, nervoso.

No ouvido do outro, o som despertou uma fúria contida. Ensaiou socos de boxe na frente do espelho, como se fosse um touro indomável da vida. Fez a barba olhando com determinação para a própria face refletida.

 

- Você é o cara. Você é o cara. – repetiu como um mantra.

 

Enquanto isso, no outro extremo de Curitiba, capital de rostos cinzas e pétreos curiosamente chamada de cidade sorriso, Gabriel esfregava desesperadamente um sabonete em suas bochechas. Após a lavagem, foi com desgosto que contemplou sua pele.

 

- Eles vão me crucificar. – pensou com uma tristeza doida pra virar desespero.

 

Mas ficou só na tristeza mesmo, que é assim que a vida é.

 

I.

Trata-se do velho truque da antecipação do sofrimento. Quando Gabriel tomou rumo em direção ao colégio, no decorrer das oito quadras foi imaginando o pior cenário possível para o apocalíptico primeiro dia de aula na 5° série B de uma escola particular. Fazia isso na vã esperança de que, imaginando o pior, o pior não surpreenderia. O pior nem poderia ser tão ruim quanto sua imaginação perturbada.

Basicamente, todos ririam dele. Todos, sem exceção, especialmente Vitor e Aluísio, os dois demônios que transformaram seus últimos dois anos de primário em um verdadeiro inferno.

Gabriel, de apenas dez anos, já tinha enormes espinhas espalhadas pelo rosto. Se fossem apenas espinhas convencionais, vá lá! Coisas da idade, que se pode fazer? Mas Gabriel tinha cistos e manchas que reinavam sobre sua pele oleosa e tiraram seu sorriso há muito tempo. Ademais, era magro e atarracado. O clichê mais puro do alvo preferido das crianças mais favorecidas geneticamente. Crianças como Vitor e Aluísio faziam questão de lembrar Gabriel todos os dias o quanto ele era um monstrinho.

Por isso, Gabriel caminhou imaginando que a passagem para a 5°série não traria nenhuma mudança boa. Oh não, pelo contrário. A sala teria um maior número de alunos, mais gente pra caçoar dele até não poder mais.

Mas não foi bem assim. Na hora do recreio, Gabriel já sabia (com muito alívio) que o cruel Vitor havia mudado de colégio, e Aluísio, pelo menos até o momento, ignorara por completo a presença de Gabriel.

Mas caminhemos por partes, que é quando o pobre menino complexado entra na sala de aula.

Já há na sala sete ou oito alunos, meninas fazendo rodinha num canto, um aluno novo sentado em silêncio na expectativa nervosa das novidades, e dois conhecidos de Gabriel do ano anterior: garotos nem bons, nem ruins. Nunca puxavam as risadas que tanto machucavam Gabriel, “apenas” riam junto quando o alvo era ele. Aluízio ainda não estava presente e Gabriel tratou logo de ir para a última carteira da fila, certificando-se de que ninguém ali estava rindo dele.

E foi com uma alegria cruel que Gabriel viu outro aluno novato entrar na sala, coisa de minutos depois. Era gordo, cheio de sardas e aparelho nos dentes. Seu olhar era meio abobado e ainda por cima mancava de uma perna. Gabriel olhou para ele como quem deseja encontrar ali um novo objeto de zombaria.

Alguém que não fosse ele.

Quinze minutos depois, a beira de o sinal bater, a sala estava cheia. Aluízio entrou por último e Gabriel notou que ele devia ter crescido uns dez centímetros nas férias. Seus olhos estavam calmos e sentou sem cumprimentar ninguém. Gabriel não sabia se isso era ou não um bom sinal.

Então o professor entrou...

A primeira impressão que ele passou ao se posicionar diante dos alunos (pelo menos foi esta a impressão que Gabriel teve), era que se tratava de um homem sério. Por “sério”, entende-se o típico professor bravo, aquele que você sabe que nunca vai te fazer sorrir.

Claro que não se deve levar as primeiras impressões muito a sério. Quem olhasse pela primeira vez para Gabriel, poderia facilmente rotulá-lo com um mane esquisito com quase tantos problemas quanto às espinhas na cara.

E Gabriel não era nada disso. Era só um menino triste.

 

- Bom dia. Eu sou o professor Valentino...

 

Um murmurinho de risada abafada fez-se ouvir num dos cantos da sala. O professor não ouviu, ou fez que não ouviu.

 

- Serei o professor de história de vocês durante este semestre. Há duas coisas que vocês precisam saber sobre mim. Um: não tolero engraçadinhos na minha aula.

 

Gabriel sorriu, ao menos por dentro. Também detestava os engraçadinhos, já que o motivo da graça era quase sempre ele.

 

- Dois: nas minhas aulas, vocês só podem falar quando eu mandar. Como agora, por exemplo. Vou pedir para que um de cada vez venha até aqui na frente e se apresente para os colegas.

 

Foi como um soco no estômago de Gabriel. A ideia de se expor assim, com todos olhando para ele, o aterrorizava. Por isso ele sempre chegava meia hora antes da primeira aula começar. Para entrar na sala de aula praticamente vazia e ir logo para o seu canto. Sua zona de conforto.

 

- Você. – disse Valentino, apontando diretamente para Gabriel. – Venha até aqui e nos diga quem é você.

 

“Quem é você...Quem é você”.

Essas palavras ficaram girando pela cabeça de Gabriel enquanto ele achava que ia desmaiar. Mas precisava ser forte e passar logo por isso.

Levantou.

 

 

Uma nota importante para este capítulo:

 

A “teoria dos ratos” explica muito bem alguns casos de timidez que se enquadram em patologia.

Quando os ratos se sentem ameaçados, correm imediatamente para o canto do ambiente onde estão. Qualquer canto. É o local onde os ratos se sentem mais seguros, pois conseguem observar todos que estão a sua volta.

 

 

Continua...

 

Diego Gianni

(Abril de 2011)
 
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