O cravo não brigou com a rosa

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto.
Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais
O cravo brigou com a rosa.


A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a
briga entre o cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a
violência entre os casais.
Na nova letra "o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o cravo
ficou feliz /e a rosa ficou encantada".
Que diabos é isso?
O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha.
Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de
uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas
recolhidos no folclore brasileiro?
É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê.
Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá
doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de
umas boas palmadas.
A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina
Lelê.
A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma
febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.

Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar
nunca.
Os amigos sabem de quem é Samba Lelê?
Villa Lobos de novo.
Podiam até registrar a parceria.
Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do
Jardim Escola Criança Feliz.
Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a
música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos.
Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete
namorados para se casar com um.
Sete namorados é coisa de menina fácil.
Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na
garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.

Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não
procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da
Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos
setenta, coisa de viado.
Qual é o problema da frase?
Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado.
Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse,
em mil novecentos e sessenta e poucos, que algum filho
estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa
das bromélias ou coisa que o valha.
Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magôo.
Alguns se ofendem até pela internet, por alguém discordar de suas
opiniões via e-mails (coisa de viado ?)
Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado ?

Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma
tremenda babaquice.
O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade, da
boa sacanagem.
A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa
a bicha alguma..

Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão
de chácara de baile infantil - de deficiente vertical .
O crioulo - vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso)
- só pode ser chamado de afrodescendente.
O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um cidadão
caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente.
A mulher feia - aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto
batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa
do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos
estéticos da contemporaneidade.
O gordo - outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do
Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão - é o cidadão que está fora do
peso ideal.
O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e
Olívia Palito.
O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca
telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho.
Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades
especiais.... Não dá.
O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição
fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014,
disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao
invés de mandar o juiz pra pqp e o centroavante pereba tomar
no ...., cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona
Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos
homens, do velho Bach.
Falei em velho Bach e me lembrei de outra.
A velhice não existe mais.
O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova,
aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral,
o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na
beira da sepultura.
A velhice, agora, é simplesmente a "melhor idade".

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde.
Defuntos? Não.
Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto.

 
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