A casa


Alguns dizem que uma casa...é só uma casa. Um tijolo sobre o outro, um teto pra se proteger da chuva. A questão está no uso que se faz da casa.

Enchemos paredes e cômodas com fotografias da família. Nas fotos todos aparecem sorrindo.

Decoramos a casa de uma maneira que possamos chamar de lar. Doce ou amargo, é um lar.

A casa a qual me refiro ficou vazia por uma década. As pessoas nas fotos sorriem para lugar algum.

Para um ponto vazio perdido no tempo.

A mesa de madeira da cozinha, agora repleta de mofo e pó, parece morta. Ela também aparece em algumas das fotos, sempre imagens de meia dúzia de pessoas com xícaras de café fumegante nas mãos.

Na cama de casal do quarto, apenas o estrado. Os lençóis também foram roubados por quem notou que a casa estava abandonada. Isso faz tempo e já não há mais o que roubar, incluindo a esperança.

Dentro de instantes, alguém retornará a casa. Alguém com a pele mais amarelada e envelhecida do que as fotos nas paredes rachadas.

Mas não ainda.

A casa terá que aguardar mais um pouco até que esse alguém retorne, abra as janelas e deixa um pouco de luz adentrar.

Precisamente agora, esse alguém, esse homem sombrio e entristecido, está segurando uma das alças do caixão da mãe.

Ninguém sorriu para ele e os pêsames foram mera formalidade. “Ele foi um monstro com a mãe”, comentava-se pelos cantos da capela.

Ninguém viu uma lágrima descer pelo seu rosto. Sua face acinzentada e pétrea parecia incapaz de revelar qualquer emoção. Talvez fosse o jeito dele. Talvez.

Você acaba ficando com pena de um desgraçado desses.

Seu único irmão havia morrido ainda garoto. O pai já fazia uns dez anos, mas não foram os cigarros, foi um tal de bicho barbeiro, bicho de chagas, qualquer coisa assim.

E agora a mãe, que passara os últimos três anos acomodados na casa da irmã, sendo amparada por ela e pelo tio também idoso. Três anos sem conseguir sair da cama, exceto para ir pra uma cama de hospital. Foram várias as viagens, até que não voltou mais.

O velório era um reencontro entre ele e a “família” da qual não fazia parte. Ele era à sombra de um verme que havia abandonado a própria mãe. Ele não tinha tempo para isso, à mãe nunca foi problema dele.

Chorar sobre o corpo dela seria uma agressão. Uma hipocrisia. Que sofresse em silêncio, se é que era capaz de sofrer.

Com o corpo da pobre senhora engavetado, o tio ainda se ofereceu para dar uma carona para aquele sujeito.

 

- Vou pra casa da minha mãe. – disse ele.

 

Era da casa abandonada que ele se referia. A casa onde ele viveu a juventude ao lado dos pais e do irmão. Eram uma família. Pobre, humilde, sofrida. Era um lar.

E também era madrugada quando ele desceu do carro do tio e se aproximou do portão da casa totalmente sem iluminação.

A imagem dele passando pelo portão e sumindo na bruma do quintal jamais sairá da mente do tio, coisa que ele ainda não sabe.

Uma imagem triste, para uma pessoa triste, para um final triste.

O verme sentou na poltrona descosturada da sala, uma das poucas coisas ali que não foram roubadas.  Ali tentaria pegar no sono, ali despertaria pela manhã vendo as lembranças espalhadas em porta retratos.

Imagens de uma vida distante que nem vida era.

Medo, não tinha. Era ateu de coração e não podia considerar que os espíritos do pai, da mãe e do irmão estivessem ali com ele. Ainda assim, a porta do banheiro rangeu às duas da manhã e fez seu coração sobressaltar. Era humano, afinal de contas.

Não conseguiu dormir. Não conseguiu sequer levantar da poltrona. A certa altura, chorou. Não sabia se era pena da mãe ou dele mesmo. Amigos, não tinha. Esposa, não mais. A única que, apesar de tudo, se importava com ele, foi enterrada há algumas horas.

Muito poderia acontecer agora. Os fantasmas de seus entes podiam realmente aparecer. Sua mãe tocaria de leve seu ombro e lamentaria: “Ah, meu menino...”. Ele levantaria da poltrona assustado e nunca teria certeza se havia ou não sido um sonho.

Mas essa não é uma dessas histórias.

Ele também poderia ter morrido ali mesmo, naquele poltrona. Sozinho, no escuro. E demoraria muito tempo até que alguém notasse, solitário que era. Quem sabe um novo bandidinho, invadindo a casa e encontrando o corpo.

Mas também não é uma dessas histórias.

Amanheceu, porque sempre amanhece. Ele abriu as cortinas, deixou um pouco de ar entrar. Olhou sem emoção para as velhas fotos, já havia chorado demais e durante a noite as coisas são sempre mais difíceis mesmo.

Pensou em ligar para a ex-mulher. Ideia estúpida. Cogitou então ligar para o tio e agradecer forçadamente as providências tomadas no enterro. Outra ideia estúpida.

Então saiu da casa para ir até a vendinha do Seu Agenor comprar alguns produtos de limpeza. As coisas por ali continuavam as mesmas, intocáveis, Seu Agenor perguntou como andava a família, o verme limitou-se a dizer que a mãe havia falecido no dia anterior. Seu Agenor, como de praxe:

 

- Meus sentimentos!

 

A sombra de homem agradeceu e foi andando de volta pra casa. Talvez saísse logo em seguida pra comprar um colchão. E buscar algumas coisas do seu apartamento. E mandar ligar a luz. E uma televisão, é claro, a eterna companheira da solidão das madrugadas. Porque algumas madrugadas nunca terminam.

É.

Essa é uma dessas histórias.

 

Diego Gianni

(26/06/2011)

 
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