Canto

Engraçado.

Não. Não é engraçado. Curioso.

Os pais criam seus filhos para um dia eles seguirem suas próprias vidas. Serem independentes deles. Nem os pais, nem os filhos, pensam que as coisas serão diferentes. Os filhos não pensam nos pais idosos, bem velhinhos, totalmente dependentes deles. Os filhos sequer imaginam que algum dia, eventualmente, seus pais precisarão deles até para amarrar o cordão do sapato.

Mas acontece.

 

(...)

 

Mariazinha, bagunceira que só, tinha o péssimo hábito de jogar as coisas no canto. A boneca de pano, o ursinho remendado e cego de um olho, o vestido de flanela. E quando Mariazinha passou a ser Maria, dona do seu nariz, algumas coisas permaneceram iguais na sua maneira de ser.

 

- Coloca ali no canto.

 

E lá iam sua bolsa, seus sapatos e caixas e mais caixas. Na casa de Maria, as coisas eram jogadas para todos os cantos.

Tinha três filhos Maria, três tipos diferentes de amor. Depois vieram os netos e a coleção aumentou. Era a vó Maria, que tinha a mania de jogar as coisas nos cantos e se entupir de chocolate.

Haveria quem dissesse: “poxa, se vó Maria não abusasse dos doces, sua saúde seria melhor”.

Que importa? Vó Maria era feliz.

 

(...)

 

Estradas diferentes separam Vô José e vó Maria dos filhos. Encontram-se umas três vezes por ano. Raramente a família toda se reúne, exceto nos momentos de doença e luto.

Vó Maria gosta dos momentos de felicidade. Vô José é tão atarefado que não tem tempo pra pensar nessas coisas. Quando eram bem jovenzinhos, ambos traçaram como objetivo montar uma família feliz.

Para vô José, foi um sucesso absoluto. Para vó Maria, idem. Coisa assim, de pegar a tristeza e jogar no canto.

 

(...)

 

Vó Maria reveza seus dias nas casas dos filhos, Vó Maria reveza seus dias nas casas dos netos. Dizem que em famílias mais tristes coisas assim acontecem porque nem os filhos, nem os netos, tem lá muita paciência para acolher gente de idade por mais que um par de dias. Mas isso em outras famílias, cantos tristes vindos lá de longe.

Vó Maria é que tinha que dividir sua atenção para com a prole tão carinhosa. Achava que era assim, e assim era.

Era de se ver! Tão comportada em cada casa que ia, em cada lugar que ficava. Tão organizada, que nem parecia vó Maria.

Os sapatos ficavam debaixo da cama. Da cama que fosse.

 

(...)

 

É mesmo curioso.

Quando os pais criam os filhos, suportam todos os tipos de problemas que os filhos criam. Não imaginam que um dia eles próprios darão problemas. Não imaginam que nem todos os filhos sabem retribuir paciência.

Quem dirá amor!

 

(...)

 

Que boa notícia.

Vó Maria é finalmente levada para uma casa onde não mais terá que fazer as malas dias depois.

Casa grande, cheia de quartos, cheia de vós Marias.

Que má notícia.

A casa está lotada, os quartos estão ocupados, tem que esperar desocupar, tem que esperar desocupar!

 

- E o que fazemos com esta vó Maria? – ouve-se uma estranha perguntar.

- Coloca ali no canto.

 

No canto tem janela. Vó Maria olha através dela.

A família acena.

 

 

Diego Gianni

(08/03/2011)

 
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