Um homem desconhecido está morto na calçada. Ainda assim, indignado com o circo armado em torno de sua morte, concede uma última entrevista para uma repórter.
Personagens:
A fotógrafa
A repórter
João Silva, o defunto
Pederneiras, o câmera
Início da esquete
Há um corpo deitado numa calçada qualquer. Não se sabe quem é. Não se sabe do que morreu. Farejando uma possível notícia, uma equipe de jornalistas entra em cena e se aproxima do corpo (a repórter, o câmera e a fotógrafa). Assim que a fotógrafa entra em cena, começa a tirar fotos do corpo de todos os ângulos possíveis.
Pederneiras – Ah! Já não era sem tempo! E eu achando que esta sexta feira ia ser meio morta!
Repórter – Felizmente, há sempre uma boa morte nas calçadas de Curitiba. Não é como em São Paulo e Rio de Janeiro, mas enfim...a gente faz o que pode.
Pederneiras – Mas cadê os urubus?
Repórter – Este infeliz acabou de morrer.
Pederneiras – Estou falando das pessoas. Você sabe como as pessoas são, não podem ver um corpo na calçada que já sentem o cheiro de sangue e se aproximam pra ver a carniça. Um bando de sensacionalistas!
Repórter – É melhor que não tenha ninguém, assim podemos fazer a matéria em paz.
Pederneiras – Mas que matéria? Do que será que este animal morreu?
Repórter – Vai saber. Se morreu, já é meio caminho andado.
A repórter anda em volta do corpo, olha com certa aflição para o defunto. Cobre a boca com um lenço.
Repórter – Pederneiras, você pode descobrir como este infeliz evoluiu para o óbito?
Pederneiras – E eu tenho cara de legista?
Repórter – Por favor!
Pederneiras se ajoelha e fica farejando o corpo, vira o corpo de lá para cá.
Pederneiras – Nenhum buraco de bala. Nenhum ferimento visível. Nenhum arranhão. Nem mesmo uma cutícula. Algo em diz que estamos perdendo nosso tempo!
Fotógrafa – E você diz isso agora que eu já fiz o book do defunto?
Pederneiras – Muita calma, muita calma! Nem tudo está perdido. Olha só o que o desgraçado tem na mão esquerda.
Fotógrafa – Uma rosa?
Pederneiras – Uma rosa vermelha. Deve ter sido crime passional.
A fotógrafa tira uma foto da rosa na mão do morto.
Repórter – Pois eu acho que não temos nada de mais. Se essa rosa tivesse enfiada no olho esquerdo dele, daí sim teríamos uma notícia!
Fotógrafa – Certeza que ele está morto?
Pederneiras encosta a cabeça no peito do morto, fareja mais um pouco.
Pederneiras – Não tem pulsação.
Repórter – Pode ser catalepsia.
Pederneiras – Não seja pessimista!
Pederneiras mete a mão no bolso do morto, tira a carteira dele, fareja, abre, fuça.
Pederneiras – João Silva.
Repórter – E o que mais?
Pederneiras – Mais nada. Tem uma carta de baralho aqui dentro. Uma dama de paus. .
Repórter – E o que isso quer dizer?
Pederneiras – Como eu vou saber?
Repórter (decepcionada) – Era um ninguém.
Pederneiras – Pode ser, pode ser. Mas vamos fazer nosso trabalho, ok?
A repórter se posiciona em frente ao corpo, segura o microfone. Pederneiras fica em sua posição de câmera e a fotógrafa se esconde atrás de Pederneiras.
Pederneiras – Vamos lá...gravando!
A repórter sorri, olha para a câmera.
Repórter – Estamos aqui na rua Saldanha Marinho, onde João Silva, conhecido jogador de pôquer da região, foi assassinado a sangue frio por uma gangue de mexicanos que abriram um cassino de pôquer clandestino na Alferes Poli. Suspeita-se que João Silva tinha um caso com Rosa Cruz, noiva do líder do cartel. O assassinato teria motivos passionais. Voltaremos com mais informações assim que sair o resultado da autópsia, caso o morto autorize.
Pederneiras fica furioso, larga a câmera.
Pederneiras – Está tirando com a minha cara?
Repórter – Acorda, Pederneiras! Não tem notícia nenhuma aqui!
Fotógrafa – Eu quero saber quem é que vai pagar pelas fotos!
Os três vão para um canto e começam a discutir, um atropelando a fala do outro. Sem se darem conta, João Silva fica sentado e diz com a voz humilde e cansada.
João Silva – Com licença...
Os três continuam a discutir sem se darem conta de João Silva.
João Silva – Com licença!
Os três se calam e olham petrificados para João Silva.
Fotógrafa – Eu vejo gente morta...
Pederneiras – Com que freqüência?
Fotógrafa – O tempo todo...
João Silva se aproxima, tímido.
João Silva – Eu não quero atrapalhar o trabalho de vocês, mas não acho muito bacana o que vocês estão fazendo. Com todo o respeito.
Pederneiras – Cacete! Que defunto educado!
Repórter – Defunto coisa nenhuma! Eu disse que era catalepsia! Eu avisei que não temos notícia por aqui!
Pederneiras – Como não?! “A impressionante história do homem que voltou da morte”. Como não tem notícia?
Fotógrafa – A questão é que eu perdi meu tempo tirando 47 fotos de um homem que simplesmente desmaiou na Saldanha Marinho!
João Silva – Olha...eu não quero ser desrespeitoso de novo,mas...o caso é que realmente estou morto.
Pederneiras (animado) – Eu não disse? Farejo uma notícia a “éguas” de distância!
A fotógrafa também se anima e tira mais duas fotos do morto (?).
Repórter – Notícia! Que notícia? “Louco varrido desmaia na calçada!”. É isso?!
Fotógrafa - A questão é que eu perdi meu tempo tirando 49 fotos de um pinel que simplesmente desmaiou na Saldanha Marinho!
Pederneiras – E daí? Louco que se finge de morto também é notícia.
João Silva pigarreia.
João Silva – Não sou louco. E nem desmaiei. Morri mesmo.
Repórter (cética) – E morreu como?
João Silva – Coisinha de nada. Estava indo visitar minha namorada. Era hoje que ela ia me dizer se a resposta é “sim”. E de repente, uma pressãozinha no peito. Um formigamento no braço esquerdo. Tudo foi ficando escuro. Um enfartozinho à toa.
Repórter – Enfarto não é notícia.
Pederneiras – É, nisso eu tenho que concordar. Sabem quantas pessoas morrem de enfarto por dia?
Fotógrafa – Quantas?
Pederneiras – Não tenho a menor ideia, mas com certeza uma porrada de gente.
João Silva – Se não for muito incômodo, eu gostaria de continuar minha versão. (pigarreia) Lá estava eu entrando num túnel gelado e...
Pederneiras – Posso gravar isso?
Repórter – Não! Não vamos desperdiçar fita a toa! Chega de bater palma pra louco dançar!
Pederneiras – Vou filmar mesmo assim.
João Silva (pigarreia) - ...E no final do túnel gelado, eu resolvi olhar pra trás e dar uma última espiada no meu corpo. Foi daí que vi três urubus em volta dele falando um monte de bobagens.
Fotógrafa – Três urubus?
João Silva – É. Um com uma câmera, um com microfone e outro com máquina fotográfica.
Os três jornalistas se olham.
João Silva – Só voltei pra avisar que perdôo vocês. E que vou puxar os seus pés no resto da merda de vida de vocês se vocês continuarem com esta palhaçada!
Pederneiras – Olha, seu João Silva...a culpa não é nossa, viu? É que ninguém quer saber de notícias boas.
João Silva – E ninguém quer saber de fantasma puxando o pé também, está certo? Cuidem-se, meus amigos, ou vão acabar suas vidas dividindo inferno com uma centena de Datenas!
João Silva volta a deitar no chão, segura a rosa sobre o peito e fecha os olhos novamente, desta vez para sempre. Os três jornalistas se aproximam do corpo e farejam o ar ao mesmo tempo.
Repórter – O cheiro da morte.
Pederneiras – O cheiro da morte.
Fotógrafa – O cheiro da morte.
Repórter – O melhor é irmos embora. Em algum lugar tem uma notícia esperando por nós.
Pederneiras – E se desta vez fosse uma notícia boa?
Fotógrafa – É. Qualquer coisa. Esporte. Economia. Cultura!
Os três se olham. Depois de um breve silêncio, caem na risada.
Pederneiras – Vamos embora sim, que nada substitui o sangue. E este infeliz não tem sangue.
Pederneiras e a repórter vão saindo de cena, quando percebem que a fotógrafa está olhando pensativa para o corpo.
Repórter – O que foi?
Fotógrafa – Eu estava pensando. Será que existe mesmo um inferno cheio de Datenas? Será que lá é o mundo cão?
Pederneiras – Deixa disso! Do mundo, a gente só conhece este aqui! E o mundo cão dá audiência.
Fotógrafa – Mas será que a culpa é nossa?
Pederneiras (irritado) – Culpa do que, minha filha?
Fotógrafa – Do sangue dar audiência.
Pederneiras – Mas é claro que a culpa não é nossa!
Fotógrafa – Então...de quem é a culpa?
Os três jornalistas olham ao mesmo tempo para a platéia. O morto também se levanta, sinistramente, e fica encarando a platéia.
Os quatro se dão as mãos e fazem uma reverência.
FIM
Autor: Diego Gianni