Do lado direito

Quando ele nasceu, festa não houve. Nenhuma celebração, ninguém que lhe sorrisse e desse as boas vindas. Sua mãe o pegou no colo com certo repúdio. Não queria que aquela pequena criatura tivesse chegado ao mundo.

Ao menos, não naquele mundo.

Ele foi deixado na soleira de um casebre, alguns dias depois. Até então, era um bebê que nunca havia esboçado um sorriso. Tudo o que conhecia era a dor e um mundo feito de sombras.

Como sobreviveu, é um milagre.

Seus pés sempre foram descalços. A fome lhe era tão natural, que nem poderia supor qual a sensação de estar satisfeito. Jamais recebeu um abraço, um beijo, qualquer gesto de carinho que o fizesse sentir-se querido. Importante. Alguém, alguma coisa.

Foi criado então por pais adotivos, severos e nada afetuosos. Recolheram a criança com medo de que Deus se voltasse contra eles. Mas era um menino feio, birrento e de olhos vazios e acinzentados. Todavia, Deus era testemunha de que o pouco que eles tinham, repartiam com aquele acanhado ser rejeitado por uma mãe pecadora, quiçá mulher da vida.

Nos tempos de escassez, das vacas magras, o pai surrava o garoto com uma tira de couro. Era mais do que preciso colocar o menino em linha reta, do lado direito da vida. Uma criança como aquela, largada na vida tão pequenina, tão precocemente, só haveria de ser amaldiçoada.

Aos sete anos, fugiu de casa. De princípio, nem fuga era, mas a medida que foi andando, passo a passo sem calço, pés calejados de suor e sangue, sabia que nunca mais iria voltar. Não queria voltar. Desejava encontrar algo, uma coisa que nem poderia chamar de felicidade, pois esta nem julgava existir. Sua vontade era tão e puramente de andar e correr para bem longe, e daí, quem sabe, chegar a algum lugar onde não sentisse tanto medo.

Assassinou sua primeira vítima aos onze anos de idade. Continuava esquelético e com as covas do rosto afundadas, feito bicho doente e faminto, solto no mundo. Foi contra um bicho como ele, só que já bem idoso, que sua ira mostrou a face. O velho se recusou e dividir um pedaço de pão duro e encardido. Quando o jovem percebeu, já estava com um pedregulho na mão esquerda, pronto para esmigalhar a fronte do velho repugnante. E foi o que fez. Mastigou o pedaço de pão com o sangue do morto nas mãos.

Não sentiu arrependimento, nem achou que fez algum mal. Era completamente desconhecido do amor. O mundo jamais tivera piedade dele, pois então, que julgassem! Que fossem todos para o inferno e separassem um lugarzinho lá para ele, pois inferno nenhum haveria de ser tão cruel e indiferente quanto à própria vida.

Já adulto, não sabia mais contar a quantidade de pessoas que sofreram em suas mãos. Mulheres, quando queria, teve a força. Quando sentia fome, furtava. Quando sentia frio, matava por alguma vestimenta. Fez de sua vida um rastro de destruição, sem em nenhum momento parar e olhar para trás.

Dividia as noites com gente doente, gente com lepra, bichos como ele, essas coisas que o mundo faz questão de virar as costas e as pessoas fingem não existir. Gente do chamado lado esquerdo da vida. O lado torto, a via sombria.

Mas também se permitia ter sonhos. Sonhava ficar de vez isolado de todos. Seria sua maneira de desistir de viver, porque no fundo, às vezes, ele fechava os olhos e fingia que não era triste. Fingia que a vida tem duas fases: a primeira é ensaio aberto e tudo é muito difícil. Depois você morre e tem a chance de nascer de novo, só que daí, as pessoas vão te tratar como gente. Vão sorrir para você e até mesmo conversar, nem que seja para saber se você está bem.

No dia em que ele morresse, quem iria notar? Morreria sozinho, bem distante de Deus, sem que ninguém derramasse uma lágrima pela sua alma.

Logo iria acontecer. Foi numa noite de quinta feira. Ele foi pego fazendo uma das suas maldades. Foi julgado e condenado a morte. Morreria no dia seguinte.

E assim foi. Enquanto caminhava em direção ao martírio, aspirou fundo o ar e sentiu cheiro de morte e sangue. Havia uma multidão e ele fingiu que todos estavam ali por sua causa.

Não era. Estavam todos atirando pedras e cuspindo em outro homem. Um prisioneiro, um vagabundo, quem sabe ladrão e assassino, assim como ele.

Logo percebeu que seriam três execuções.  Três bandidos a menos no mundo, pensou. “Daqui a pouco, nós três seremos mortos. E o mundo será um lugar melhor”, filosofou, sabendo que era mentira.

Parte da execução era que eles, os condenados, carregassem uma tora pesada de madeira até o alto da colina chamada Gólgota. Enquanto assim fazia, notou que as ofensas e as cusparadas não cessavam sobre aquele outro condenado.

“Que atrocidade este homem pode ter feito?”, pensou.

Algo horrível, certamente, pois depois que ergueram as três cruzes, apenas o tal homem foi pregado diretamente no corpo. Um sofrimento sem tamanho. O estranho homem estava na cruz do meio, e na cruz da outra ponta, o condenado debochava.

 

- Vamos, rei dos judeus! Peça para Deus nos tirar daqui!

 

Olhou sem compreender para aquele homem que não reagia, feito um cordeiro indefeso. Certa hora, ouviu - o dizer com a voz trêmula:

 

- Pai, perdoe-os, pois eles não sabem o que fazem.

 

Foi então que o condenado sentiu algo que jamais havia sentido. Ele estava bem ali, compartilhando da mesma dor e sofrimento daquele homem, sendo humilhado de todas as formas, e ele ainda reunia forças para pedir perdão por aqueles homens que o feriam? Que o haviam pregado naquela cruz?

Isso não podia ser normal. Tinha que ser outra coisa, nem seu coração e nem seus olhos  conseguiam acreditar naquilo.

Chorando muito, sentiu a estranha felicidade que nunca tivera a chance de experimentar. Sabia que era tudo uma ilusão, que ele iria morrer em minutos, que a vida não voltaria atrás e que ele nunca, nunca havia sido feliz...

Mas naquele momento, somente naquele momento, sabia que finalmente estava do lado direito.

Do lado direito de Deus.

 

 

 

Diego Gianni

(16/04/2011)
Última atualização em Sex, 02 de Novembro de 2012 06:12  
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