A rua dos pássaros mortos

Dê meia volta!

Contornei o quarteirão com meu carro, um opala caindo aos pedaços que costuma beber mais do que meu falecido tio.

Se eu tivesse seguido pela rua Jânio Quadros (odeio ruas com nomes de presidentes, sobretudo aqueles pelos quais nunca tive o menor respeito), teria chegado em casa em pouco mais de cinco minutos...

- Dê meia volta! Vamos!

Acontece que naquele dia a maldita da Jânio Quadros estava com a passagem bloqueada.

Eu desconhecia a razão. Fiquei sabendo mais tarde, mais precisamente na noite do mesmo dia, à noite que iria mudar minha vida, eu apenas não sabia disso ainda.

O almoço já deve estar pronto, então eu corro.

Eu corro, eu corro, eu corro...

* * *

- Central?

- B-bom dia...

- Bom dia.

- E-estou aqui na Jâ-Jânio Quadros.

- Pois não.

- T-tem alguma...alguma coisa estranha acon...acontecendo por aqui...

- Pois não.

- Eu n-não sabia se ligava pra pooo...polícia, não l-lembro o n-número dos bomb...bombeiros e...

- Pode falar, senhor. Fique calmo.

- S-são os pá-páááá...pássaros...

- Pássaros?

- Os p-pássaros estão m-morrendo...

- Como?

(click)

- Alô? Senhor?

* * *

- O almoço já esfriou!

- Aquela droga daquela rua!

- Que rua, homem?

- A maldita da Jânio Quadros! Estava interditada!

- Acidente?

- Sei lá! Só sei que nem domingo dá pra dirigir nesta cidade!

- Tomara que ninguém tenha se ferido...trouxe a maionese?

- Nem domingo dá pra ter sossego...

* * *

Um outro domingo, décadas atrás.

Um domingo qualquer, exceto para um menino.

Seus pais estão brigando no quarto ao lado. Mais uma vez.

- Vou te ensinar a me respeitar!

Seu pai surra a mãe. Mais uma vez.

A mãe grita, o pai sai do quarto, olha para o menino assustado e profere palavras que doem tanto quanto uma surra:

- Está olhando o que, idiota?

O pai sai de casa batendo a porta.

- Mamãe?

A mãe está na janela chorando, seu rosto está inchado, ela diz só uma coisa:

- Eu queria voar pra bem longe. Uma única vez.

É o que ela faz. O menino corre até a janela.

- M-mamãe? – gagueja o menino.

Mais tarde diriam que ela morreu como um passarinho.

* * *

- Vou dar uma volta! – resmunguei para minha esposa.

- Olha lá, hein?

Se tem uma coisa que me irrita nesta vida é quando minha esposa diz “olha lá hein?”. Ainda mais quando é domingo.

- Traz pão pra janta. – grita ela antes de eu bater a porta.

Vou caminhando e maldizendo o quanto minha vida consegue ser entediante.

Quando percebo, estou perto da porcaria da maldita da Jânio Quadros, sigo até lá.

- Não pode passar.

- Mas nem a pé? – pergunto para o policial.

- Ta interditada. – se limita a responder.

Olho pelo canto do olho e vejo algo muito estranho:

A rua está cheia daquelas coisas e...parece até que dá pra ver a agonia em seus olhinhos inexpressivos.

Jornalistas batem fotos sem parar, pessoas tentam passar, muita gente mora naquela rua, mas não dá.

Ninguém entra ninguém sai.

A rua está cheia de pássaros mortos.

* * *

Um homem de meia idade está debruçado em sua janela.

Ele mora num dos apartamentos da Jânio Quadros.

Todos os que estão nas janelas olham para baixo e vêem centenas de pássaros mortos, é assim para todo mundo, exceto para um menino.

Não, não é um menino, é um homem.

Ele olha para baixo e vê o corpo da mãe estatelado.

- M- mamãe? – gagueja ele.

É claro que ela não responde.

* * *

Depois de horas, as autoridades finalmente liberaram a rua.

As centenas de milhares de pássaros - que morreram não se sabe como – começaram a ser retirados e a rua passou a ser invadida por outro tipo de pássaros, os urubus, vulgo repórteres, que batiam fotos e mais fotos sem parar.

Eu, só consegui pensar duas coisas.

Um: “esqueci de comprar pão, a droga da padaria já deve ter fechado”.

Dois: “que se dane”.

Movido pela curiosidade (que até onde eu sei matam os gatos e não os pássaros), juntei-me à multidão e andei pela rua que não mais passaria a ter o nome do boçal do Jânio depois do incidente em questão.

Há uma montanha de corpos de pássaros, uma coisa triste e poética de se ver.

Um homem está parado ao meu lado, tão inútil quanto eu ali.

- O que será que aconteceu? – pergunto de alegre.

- E-eles não...n-não vão m-mais voar p-pra longe.

Meu celular toca e é minha esposa. Atendo e ela já me xinga, me acusa de estar em algum bar ou traindo ela, ou não sei o quê, o sangue sobe na minha cabeça e eu digo para ela:

- Vou te ensinar a me respeitar!

Desligo o telefone possesso de raiva. O homem ao meu lado, o gago, está me olhando. Há algo de estranho nos olhos dele, mas a rua é estranha, o dia foi estranho, tudo é estranho.

Eu desconto minha raiva nele:

- Está olhando o que, idiota?

Ele me olha de um jeito mais estranho ainda, seus olhos ficam inteiramente brancos e eu tombo na hora, fico agonizando no meio da montanha de pássaros mortos, peço por ajuda, ninguém repara em mim, então eu morro.

Eu morro, eu morro, eu morro...

* * *

“As autoridades ainda não esclareceram o caso dos pássaros na rua Jânio Quadros. Uma investigação foi aberta e...”.

A recém viúva está distraída, parece nem ouvir as notícias do jornal.

“...Os corpos das aves não apresentavam nenhum ferimento externo, tampouco foram mortas por algum tipo de toxin...”.

Ela desliga a televisão e vai preparar um bolo, é seu aniversário e ela não vai deixar de comemorar por nada deste mundo.

Nunca chegaram a desvendar o mistério da rua dos pássaros mortos.

Diego Gianni


20/02/2010
 
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