Crônicas de pensar

Naquelas longas caminhadas Haroldo meditava.

Talvez pense o leitor que Haroldo meditava profundamente. É natural que assim pense, habituado a ver, no cinema ou na televisão, alguém caminhando, profundamente meditativo.



Haroldo gostava daquelas longas caminhadas. Percorria pequenas distâncias, é verdade, mas as caminhadas eram longa porque Haroldo andava devagar, bem devagar.

Dizer que Haroldo meditava poderá induzi-lo, leitor, à errôneas considerações. Haroldo...pensava. E em coisas não muito profundas.

O pensamento de Haroldo – alto, magro, trajando gravata e sobretudo, por causa do frio – até que deixava a desejar.

Esclareço melhor: Haroldo pensava em nada de importante.

Entretanto, pensava. E tão pensativo andava que, tendo percorrido o mesmo trajeto centenas de vezes, era incapaz de descrever o percurso, quais as lojas, onde era a banca de jornal. Desconhecia o sentido do tráfego.

Quanto a isto diga-se, em favor de Haroldo, que ele caminhava sempre pelo mesmo lado da calçada. Nunca atravessava a rua.

Por que? Porque sim.

Por que Haroldo pensava? Quais obscuros motivos o levavam a percorrer sempre a mesma rua, em longas caminhadas, perdido em pensamentos?

As respostas, leitor, só eu as tenho, eis que sou o autor da história.

Sem querer ser prolixo, permita-me um breve comentário: Quando Shaw declarou que a arte imita a vida (ou foi Wilde? Ou fui eu mesmo?), por certo estava usando seu famoso sarcasmo para divertir-se com a frustração de milhares de leitores, ao longo dos tempos.

Na arte a vida está contada do início ao fim. Os imprevistos são previstos previamente pelo autor. As coincidências são ardilosamente preparadas, os personagens à mercê do critério do criador.

Na vida real a arte acontece por acaso. Quando menos se espera e, muitas vezes, nem nos damos conta.

Um pouco de paciência, leitor, e terá o exemplo do que afirmo.

Haroldo caminhavam longamente, percorrendo o trajeto habitual, e pensava. Neste momento, pensava na situação de seu time no campeonato.

Você, leitor, apressado como sempre, concluirá que Haroldo é diretor, técnico e até jogado de futebol.

Ledo engano.

Haroldo é corretor de imóveis. Poderia ser dentista, publicitário e porteiro de cabaré. Mas eu, o autor, determino que Haroldo é corretor de imóveis. E você, leitor, está limitado a saber apenas o que eu sei. E se dê por satisfeito!

Transeuntes e frequentadores habituais daquela rua, vendo a digna figura, passo lento, rosto solene, julgavam cruzar com alguém sobre quem recaem graves responsabilidades de decisão, alguém imerso em questões transcendentais sobre a origem e a finalidade da vida, alguém de cuja ação depende o futuro da humanidade.

Porém Haroldo está pensando no seu time, no futuro dele no campeonato e os riscos que corre de cair para a segunda divisão.

Uma coisa que eu sei e que você, leitor, não sabe: Haroldo não gosta muito de futebol. Ele gosta mesmo é de Clarinha, por quem é apaixonado há muitos anos.

Clarinha era casada e tivera um caso com Haroldo. Ele jamais a esqueceu. Terminaram porque ela não quis mais, não se sentia bem traindo o marido.

Haroldo, que também era casado, não se importava nem um pouco por estar traindo a esposa.

Por isso Haroldo pensava em futebol: Para não pensar em Clarinha. Outro dia Haroldo pensou em viajar para o Rio, para não pensar em Clarinha.

Tudo o que Haroldo pensava e fazia era para não pensar em Clarinha.

Mas não adiantava, Clarinha estava sempre em seus pensamentos, paixão igual, jamais se viu.

Se nesta altura você, leitor, ficar indignado, achar ridícula esta história que estou inventando, terá toda a razão.

Mas, humildemente, permita-me uma advertência. Não há tragédia maior do coração humano do que a paixão, seja na alegria, seja no sofrimento.

Por que tragédia?, você pode perguntar. E eu respondo. Porque a paixão é o único sentimento humano saudável, em que o sofrimento gera prazer. O sofrimento da espera, o sofrimento da despedida, o sofrimento de estar junto, o sofrimento de não estar, é uma tragédia, a mais prazerosa tragédia que pode nos acometer.

Clarinha, por sua vez, também não esquecera de Haroldo. Sonhava com ele, acordada em noites insones, ansiava por seus beijos e suas carícias, dedicava-se às músicas românticas, todas evocativas de sua grande paixão, da qual abdicara por um superior sentimento de culpa.

Terrível paixão em que estar junto ou separado gera a mesma dor, a mesma alegria.

Veja, leitor, como são as coisas.

Desde o início eu sabia que Haroldo e Clarinha cruzariam, um pelo outro, numa das longas caminhadas de Haroldo.

Ele apostava nisto, por isto tinha escolhido aquela rua para caminhar, ele apostou na probabilidade de, um dia, Clarinha caminhar por aquela rua, daquele lado da calçada.

E foi o que aconteceu: Clarinha dobrou uma esquina e deu de frente com Haroldo.

Os dois congelaram, frente a frente, a paixão aflorando como nos velhos tempos, os impulsos exigindo que se atirassem, um nos braços do outro, que se beijassem e sentissem, como sentiam antes, a identidade perfeita do amor, unindo-se, matéria e alma, na fusão perfeita da paixão.

– Oi Clarinha.

– Oi Haroldo.

– Tudo bem?

– Tudo. Estou com pressa e...

– Até logo, Clarinha.

– Adeus, Haroldo.



Clarinha seguiu seu caminho, querendo voltar. Haroldo ficou parado, querendo segui-la.

O que houve depois?

Eu sei o que houve depois. É o meu privilégio de autor.

Você? Você jamais saberá.

PRIVILÉGIO DE AUTOR

PAULO WAINBERG

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