Flocos de neve

Um nome: Wilson. Uma paixão: fotografia. Um número: 28, a sua idade.

E enquanto caminhava pelas montanhas de neve em Aspen, cidade do estado de Colorado, Wilson se perguntou se existia alguém no mundo que fosse exatamente como ele.

Não pensou em seu corpo, em suas feições ou mesmo na sua barba que gostava de fazer a cada três dias. Wilson queria saber se logo ele, com todos seus planos e ideais, tinha uma cópia perambulando por aí.

O celular toca e interrompe seus pensamentos.

 

- Alô?

 

É a namorada que deixou no Brasil para fazer suas fotos. Não podia carregar mais uma mala com ele.

 

- Tudo bem com você, Wilson?

 

A pergunta soa ressentida.

Ela queria estar com ele, apesar de não falar uma palavra em inglês. Apesar de detestar fotos. Apesar de saber que o ama mais do que ele a ama.

São muitos os apesares e pesares e ele se esquiva respondendo por monossílabos. Quando desliga, imagina que igual a sua namorada deve haver milhares.

Não estava apaixonado...

E se a pessoa não tem nada de especial, quando alguém a escolhe como companhia, não deixa de ser uma escolha arbitrária.

Sua namorada era fútil e em nada lembrava as montanhas geladas de Aspen. Elas tinham um magnetismo que o faziam querer deitar e morrer ali mesmo, tendo como última visão os flocos de neve descendo sobre seu rosto azulado.

Mas o que o incomodava não era saber se sua namorada era única, mas sim se ele próprio era.

Sua missão, escolhida por livre e espontânea vontade, era fotografar milhares dos flocos de neve. Queria provar que nenhum deles é exatamente igual a outro.

Talvez tenha sido o frio, ou o isolamento, ou mesmo ambos, mas no meio de sua aventura, passou a invejar os tais flocos de neve. Estava convicto de que em algum lugar do mundo haveria de ter pelo menos uma pessoa que pensasse exatamente igual a ele, e daí ele não mais seria uma pessoa única.

 

- Toco piano de ouvido, é minha segunda paixão. – reflete Wilson, querendo acreditar o quanto se distinguia de qualquer outro ser humano.

 

E descem os flocos de neve, e cada um deles é um milagre. Cada tempestade traz trilhões deles, moléculas de água que se agregam e formam uma estrutura única.

 

 

- Única! – berra Wilson e uma lágrima cristaliza em seu rosto congelado.

 

Estava quase decidido e nunca mais regressar ao Brasil. Seria melhor para ele, quem sabe melhor também para sua namorada.

Nunca mais ele deixaria de se sentir especial em meio aos flocos de neve.

 

(...)

 

Isso aconteceu há algumas décadas, a memória já não é tão boa e Wilson interrompe a história que remete pouca credibilidade para seu ouvinte, que ainda assim insiste:

 

- Por que decidiu voltar para o Brasil?

 

E velho olha para o garoto com cara de tapado na sua frente. Um tapado de bom coração, mas um tapado. Quiçá um hipócrita, que é a maneira do velho Wilson se referir aos voluntários do asilo, “um bando de escoteiros tapados que não entendem droga nenhuma da vida”.

 

- Voltei porque tive que voltar. – diz com rispidez e o garoto baixa os olhos, deixando claro que não acreditou em nenhuma palavra dita pelo idoso rabugento. Mas o tapado tem bom coração e insiste novamente:

 

- E a namorada que o senhor deixou aqui?

 

O velho olha para o garoto como se remetesse seu desprezo para o endereço errado.

 

- Ela era só mais uma.

 

“É, e você sem dúvida é muito especial”, pensa o menino, sem obviamente nada dizer. “Veja só como o senhor é querido e cheio de amigos”.

 

Levantando-se da sua poltrona, Wilson dá a conversa por encerrado. O garoto que fosse encher outro velhote com sua maldita boa ação.

Minutos depois, uma enfermeira entra na sala e surpreende o velhinho tocando uma canção meio triste e mal ritmada no piano com meia dúzia de teclas faltando.

 

- Como o senhor está? – pergunta ela para Wilson, que só para variar, simplesmente a ignora.

 

Acostumada com isso, ela deixa o prato de sopa dele sobre a mesa e sai da sala. Wilson para de deslizar seus dedos manchados pelas teclas amareladas e por fim responde a pergunta:

 

- Sozinho. – sussurra. – É como eu estou.

 

Pingos de chuva descem sobre a janela. Wilson fecha os olhos e sorri.

Finge que a chuva é neve.

Finge que ele é único.

Que suas escolhas foram certas.

Que ele foi feliz.

Mas então abre os olhos, e é só a chuva.

 

 

Diego Gianni

 

(22/12/2010)

 
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