Ronda

Ela ronda a casa. Nos últimos tempos, é só o que ela tem feito. A espreita, como quem espera a caça estar distraída. Um singelo momento de distração e pronto. Está feito.

Ela sente o cheiro. Vem de dentro do sobrado, do andar mais elevado. Faz três anos que a senhora não consegue sair da cama. Faltam-lhe forças em todos os sentidos que fazem da pessoa um convite para que ela ronde a casa.

Pernas e braços estão repletos de hematomas. Joelhos já não se dobram e o braço mal sustenta a pequena tigela de sopa, único alimento que ainda desce pela sua garganta irritada. A televisão do quarto improvisado pega apenas dois canais, dos quais a senhora utiliza apenas um para ver a novela do horário nobre. E ainda assim reclama, “a vista já não ajuda; o pescoço dói de olhar para cima”, é uma lástima.

É a família que cuida da senhora, família que se divide entre a boa e a má vontade. Secretamente (às vezes nem tanto), há o desejo oculto de que a senhora descanse de uma vez no último sono, pois há neste mundo três formas de prolongar a vida: lutar para viver; lutar para sobreviver; lutar sem esperar mais pelo quê.

A sobrevida prolongada da senhora causa-lhe desgosto, mas que saída? Suicida ela não é, no máximo em pensamentos infaustos. Ela não quer morrer, ela não quer viver, a bem da verdade ela anseia mesmo é sumir. Mas sumir não é uma opção servida numa bandeja a nós pelos deuses. É compulsório ficar e agüentar, e que significado tem a vida sem a perspectiva de alegrias? Qualquer alegria. É aceitável viver períodos prolongados de tristeza, contanto que haja um amanhã. É a promessa de um amanhã que nos faz seguir, engolir, suportar. Quando possível, esquecer. Quando divino, perdoar.

Há noites mais longas. Nelas, a família vê-se obrigada a chamar pelo socorro dos estranhos que atravessam a cidade com sua sirene e uniformes impecavelmente brancos. E daí que, enquanto consciente, o medo surge nos olhos apagados da senhora e ela reza para não morrer. Só depois de melhorar, já com o soro nas veias, é que sua prece roga para que ela parta de uma vez. Dormindo. E então, pela manha, alguém irá ao quarto dela abrir à persiana e constatará que em casa de defunto é melhor que as janelas fiquem fechadas. Toda a família será avisada que “ela se foi, ela se foi, que tragédia, aconteceu de madrugada, fui levar o café e ela estava morta, que coisa estranha, nem gemeu durante a noite, bem que eu desconfiei que ontem ela estava diferente, como se soubesse, como se soubesse, como se soubesse...”.

Nada acontece. À noite, que é imortal, aos nossos olhos passa e finge que é dia. Mais um dia. Dia de sobrevida, sem alegrias, comida sem gosto, novela sem emoção e pronto!, persianas fechadas e hora de dormir. E o sono, igual à vida: ambos sem sonhos.

Ela ronda a casa.

 

 

Diego Gianni

(01/02/2011)

 
Copyright © 2011 Acontece Curitiba. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por LinkWell.