A vida em 13 parágrafos




Abriu os olhos. Uma luz. Ele não vai se lembrar de nada. Choro. O seu choro. É um hospital. Ele está no colo de uma mulher. Seu primeiro amor. Incondicional. Ele não sabe onde está. Ele tem sorte. Vai ter uma vida incrível. Ele ainda não sabe.

“Ele está andando”, comemora a família. “Que bonitinho”, diz uma tia. Ele não sabe quem é ela. Não sabe onde está. Não sabe quem é. Ele é uma graça. “Olha o aviãozinho...”.

“Quer namorar comigo?”, ele gagueja. A garotinha fica corada, tanto quanto. Ela fecha os olhos, sorri timidamente, faz que sim com a cabeça. Desajeitado, ele aproxima sua boca da dela. Grudam os lábios, por meio segundo. Seus corações vão explodir. Bate o sinal do recreio. Ela corre para o grupinho das amigas. Ele volta assoviando para a sala. “Sou um homem”, pensa com orgulho.

“Te pego lá fora”. Foi o que ele ouviu do garoto sardento. Não se bicavam. Estranhavam-se há tempos. A duas quadras do colégio, experimentou pela primeira vez o gosto do sangue. Decidiu não brigar com ninguém nunca mais. Mas nem por isso iria esquecer.

Ele tira o sutiã dela. Passa os dedos pelos bicos dos seios, sem jeito. Ele diz “eu te amo”, mas só porque acha que é o certo a dizer. Ela responde o mesmo. Em dois anos, irão para a mesma faculdade. Mas ela não é a mulher da vida dele. Em breve, saberá. Sentirá. E a vida segue.

Ele ergue o braço, faz vibrar o canudo. Na platéia, sua mãe está emocionada. “Meu filho, um médico”. Ele agradece a mãe. Por tudo. Quase ao seu lado, na fileira de trás, É a vez de Glória, a Glorinha, ser chamada para receber o diploma. Eles mal se falaram durante toda a faculdade, mas manterão contato. E ela será sua esposa, coisa que ele ainda não sabe. 

A sala está acesa, a luz é bem clara. Ele puxa o bebê. É a primeira vez que ele ajuda a trazer uma criança para o mundo. Ele sempre vai se lembrar disso.

“Estou grávida”, diz Glória. A notícia vem de repente, assusta, atordoa. “Vou ser pai”, ele pensa e parece que é outra pessoa no seu lugar pensando isso, de tão incompreensível. “Vou ser pai”.

Estaciona o carro em frente ao colégio. Antes de abrir a porta, olha bem para o filho. O menino está nervoso. Preferia ficar em casa. É seu primeiro dia de escola. “Você pode contar comigo pra tudo, filho”. O menino não sorri, está amuado, não tem jeito. “Te amo, filho”. “Também te amo, pai”. Abre a porta do carro, o menino sai e vai andando sem vontade até a porta do colégio. Só quando vê que o filho entrou, dá a partida no carro. Sente um nó no estômago, uma vontade de chorar, uma alegria estranha. 

“Vocês vão ser avós”, diz Bianca, esposa do filho do meio. Ele aperta a mão de Glória e sente um nó na garganta. É o primeiro neto. “Eu, avô”. E vem aquele contentamento de não saber onde está direito, de sentir-se fora do eixo. “Eu, avô”.

Faz quinze anos que se aposentou. Está regando as plantas, seu segundo passatempo predileto. O primeiro é um bom livro. Junto com um bom vinho. De mãos dadas com Glória, enquanto ela revê álbuns de fotos. Imagens que trazem alegrias e tragédias, como todo álbum tateado por mãos enrugadas. Dentre as fotos, a do filho mais velho, que partiu tão novinho num acidente de moto. “Você pode contar comigo pra tudo, filho”. Eles nunca esqueceram. “Te amo, filho”.   

Ele anda sentindo tonturas. Com frequência. Ele está regando uma samambaia, quando sente que vai cair. Ele senta no banquinho do jardim para recuperar o fôlego. É a última vez que ele senta nesse banquinho, presente da filha caçula. Ele chama pela esposa.

Ele está no colo de uma mulher. Seu último amor. Incondicional. É um hospital. Ele não sabe onde está. Choro. O seu choro. Fechou os olhos. Uma luz. Ele não vai se lembrar de nada. Ele tem sorte. Teve uma vida incrível. Ele sabe.

Diego Gianni
(02/03/2012)
 
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