Céu de Vidro

Menino. Moleque. Pivete. Rapazote.  Quantos nomes podem definir a infância?

No caso de Bino, protagonista desta história miúda, outros nomes caberiam

melhor para carimbá-lo. De momento, basta um:

Sadismo.

Gostava de queimar formigas, mirando uma lupa em suas carcaças.

Pobres daquelas formigas. Logo elas, tão parecidas com nós, humanos.

Trabalham incansavelmente. E para quê? Para de repente serem pisoteadas

como se nunca tivessem existido. Como se não tivessem importância alguma para o universo.

E caso (caso!) uma miudeza de formiga pudesse se expressar verbalmente,

quem sabe diria: “oh, eu fui pisoteada e estou morrendo.

Mas vá lá, faz parte da vida. Há coisas maiores que eu”.

É, quem sabe. Mas quando uma formiga é morta de forma intencional,

daí já estamos falando de assassinato.

É outro papo.

Bino era um serial ant. Um assassino em série de formigas.

E não ficava só nisso. Tinha verdadeira excitação em meter dentro de um pote vazio, outrora de pepino em conserva, insetos de diferentes espécies para guerrearem.

 

Baratas versus aranhas.

Uma viúva negra contra meia centena de formigas.

Um besouro com melado na carapuça, aprisionado com uma abelha rainha.

Ah, Bino, Bino...foste um menino, moleque, pivete e tudo o mais, terrível!

Mas quando cresceu, virou gente, tudo isso passou. Eram coisas da meninice.

Ao menos ele nunca meteu um gato dentro do forno, pois isso sim seria abominável! Porque formigas...bom, formigas são pequenas por demais.

E não são fofas como os gatos, vocês hão de convir, assim como esquilos são umas gracinhas e os ratos, seus irmãos roedores, são uns escrotos nojentos e repugnantes.

Eu sei, é uma incoerência, mas é assim que a vida é.

Bino é um exemplar humano e, portanto, está no topo da cadeia alimentar.

Nem se pode dizer que seu passado o condena, pois até onde se sabe,

formigas não têm bons advogados.

Até – onde – se - sabe.

Mas vamos, vamos de uma vez, vamos pular as próximas linhas e nos aproximarmos, respeitosamente, do leito de morte de Bino. Escrever sobre o passado é relativamente fácil, basta incluir uma série de traumas que envolvem família e os gritos daquela professora frustrada do primário. Escrever sobre a morte é mais simples ainda, porque ela vem pra todo mundo e basta fazer o personagem fechar os olhos e depois escrever “fim”. Ah sim, e de preferência terminar com uma frase de impacto (escrita numa linha à parte).

Bino tem quase cem anos, portanto, sua morte não é uma tragédia.

Teve boa saúde a vida toda. Teve filhos. Netos. Bisnetos.

Trabalhou como uma formiga até os setenta e teve mais duas décadas de lambuja para “coçar” sem peso na consciência.

O descanso merecido.

A numerosa família está em torno de sua cama.

O velho Bino está fraco, não fala há três dias. Seus olhos não abrem mais. Ele apenas ouve. Ele respira.

Ninguém chora. Vovô Bino precisa descansar.

Opa.

É. Aconteceu. Ele descansou.

Seus olhos agora estão abertos. Ele veste calças curtas e olha ao redor. É a rua da sua infância. Ele cresceu ali. Até a goiabeira está lá! É lindo. É perfeito.

Bino se sente tão feliz que corre como um doido agitando os braços. Trepa na árvore, cai lá do alto e não sofre arranhão.

A morte é linda, ele pensa. Não, melhor: ele sente. Foi-se a dor nas costas. O cansaço. A fadiga. A careta em frente ao espelho.

Agora é alma solta, bicho livre, de volta a melhor época de uma vida que ficou para trás.

Mas de súbito, algo estranho. O menino sente calor e logo pensa no inferno.

Não.

Que bobagem.

“Fui um homem bom”, conclui Bino enfaticamente.

“Este calor pode ser de tudo, menos do inferno”.

Aqui devo me intrometer e dizer que Bino estava meio certo (para os otimistas)

e meio errado (para os pessimistas).

Porque é impossível pensar em inferno, sem pensar no céu.

Talvez por isso Bino tenha erguido o rosto em direção as nuvens, e quando assim o fez, viu que o céu era de vidro.

Era lá do alto que vinha o calor. Um raio de luz vindo daquele vidro, a luz disparada bem no meio de sua testa.

Para onde Bino corresse, cada vez mais desesperado, o calor o perseguia. 

Não tinha como fugir. E nem para onde.

Por estar morto, não se cansava mais.

Correu por dias, semanas, meses, de uma ponta a outra da rua, sem nunca perceber que a rua de sua infância era só o que restava.

Para sempre.

Sem noção de tempo. Sentindo apenas o calor queimar sua pele mais e mais, mas sem nunca morrer, sem nunca cair.

Para sempre.

Muito além do céu de vidro, se Bino fosse um gigante e pudesse ver, notaria as bordas do céu envidraçado.

Eram as bordas de uma lente.

Uma lupa apontando para o menino Bino.

Uma criatura segurava a lupa e ria surdamente no vácuo do espaço.

Não digo que era Deus. Não digo que era o diabo.

Mas que diabo!

Vamos dizer que era uma formiga. De enormes proporções.

Ah sim, e que o bem, o mal e o tamanho das coisas fazem parte de um mesmo pacote de relatividade.

É.

Olha lá o Bino, coitadinho, descendo a ladeira da rua feito um doido.

E a formiga trabalha.

Incansavelmente.

Diego Gianni

(12/11/11)

Última atualização em Dom, 13 de Novembro de 2011 16:27
 


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