Teatro dos mortos




Canelas finas, corpo desnutrido, cabelo palha de aço, pele cor da noite e barriga inchada.

Mais um moleque sem eira nem beira a peregrinar sem rumo pelas ruas do Brasil, um país de todos.

Vá saber a razão, morava dentro do pivete uma vontade de crescer de alma, um impulso de ir pra frente e ser alguém. Mas como?

Se apaixonou pelo teatro desde que uma companhia mambembe fez uma apresentação a céu aberto, na praça de Esperança. Era o primeiro show que ele tivera a chance de assistir, pelo menos por alguns minutos. Foi enxotado dali por um guardinha que não havia gostado da sua presença, vai que a bolsa de alguma madame “some”, espaço público também tem seus limites.

Encasquetara com a ideia de, na primeira oportunidade, assistir uma peça do começo ao fim. E ela surgiu.

Foi meio por acaso (a não ser que essas coisas de destino existam) que descobriu, num bairro afastado, um teatro imponente - algo que na sua cabeça parecia ser cultura pra gente chique.

A rua estreita tinha uma fileira de carros estacionados. O teatro já havia começado? Aparentemente, o bilheteiro tinha feito a burrada de ir ao banheiro e deixar a entrada desprotegida, sem suspeitar que houvesse por perto um moleque doido pra entrar de gaiato na peça de gente chicosa. E a história devia ser boa, a platéia estava cheia!

O lugar estava meio escuro, de forma que o guri conseguiu entrar na penumbra e ficar sentadinho num dos cantos. Invisível, como costumava ser.

As poltronas eram de forro vermelho e havia cinco ou seis fileiras delas. Lá na frente o palco, as cortinas fechadas de um azul de céu de muro.
Mas o que mais chamou a atenção do intruso foi o silêncio.

Pleno. Absoluto. Sem algazarra, risinhos infantis, assovios e gritos de “começa, começa”. Ali estava à própria definição de respeito, e porque não dizer, comoção. Notou que algumas das pessoas que ali estavam soluçavam bem baixinho, com medo de que o choro de um sobressaísse o de outro. Que cenário estranho, pensou o pivete sem nem saber o que é cenário, e as cortinas nem estavam abertas ainda!

Um homem de terno se encaminhou até o centro do palco e disse numa voz respeitosa:


- A homenagem ao senhor Francisco Cunha vai começar.


“Que chatice”, pensou o moleque intruso, de certo não era peça de teatro coisa nenhuma, tudo estava muito sério para ser um show teatral, vai ver algumas daquelas pessoas burguesas estavam choramingando porque sabiam que aquilo era um saco, ´inda mais para um domingo de manhã.

Um telão surgiu por cima das cortinas fechadas e foi baixando até o chão da boca do palco. “Cinema?”, cogitou o pivete. Poderia ficar mais interessante, com sorte. Sorte é tudo na vida.

Surgiu na tela à imagem de um homem sisudo de bigode proeminente e os caracteres “Francisco da Rocha Cunha”, coisa que era grega para o pobre guri desnutrido e desconhecedor das letras, incluindo as da sopa.

Uma música que o moleque não conseguiu distinguir (música besta, sem batida nenhuma) pôs-se a tocar enquanto na telona passavam fotografias do homem bigodudo, por certo o tal de Francisco alguma coisa.

Após interminável meia hora, o homem de voz respeitosa voltou à frente das cortinas.


- Gostaríamos de chamar ao palco os familiares que desejam falar alguma palavra. – disse ele com sua voz meio flautosa.


Um homenzarrão até que parecido com o bigodudo da telona foi até o palco. Com os olhos embargados, anunciou que ia recitar (tentar recitar) o poema preferido do irmão. Era de Augusto dos Anjos e dizia algo sobre ser filho do carbono e do amoníaco, coisa que também era linguagem grega para o moleque.

Peça de gente chique não foi feita pra gente como eu, refletiu o moleque amuado.

Umas três mais pessoas chorosas subiram ao palco para dizer coisas do tal Francisco, personagem que, na cabeça do menino intruso, deveria ser o personagem principal da peça, coisa muito estranha, já que ele ainda não havia dado as caras.


- E agora – disse o da voz flautosa. – Vamos todos nos despedir do senhor Francisco Cunha.


É agora que o bicho entra em cena, pensou o moleque. A roldana fez um chiado e a cortina de azul muro começou a abrir-se lentamente.

Simultaneamente, todos os que estavam na platéia colocaram-se de pé (coisa que o menino também fez para continuar comportadamente invisível) e um foco de luz centralizou num objeto que estava no palco.

O guri intruso ficou boquiaberto. O coração palpitou mais forte. Adrenalina. Um medo nervoso.

O objeto era um caixão. Caixão aberto. Ali, deitado, estava o homem das fotografias na telona. Reconheceu que era o homem na mesma hora, apesar de estar sem o bigode e nenhum fio na cabeça.

O som dos choros não era mais tão contido. Ouviu uma mulher gorda da primeira fileira gritar “meu Deus” Meu Deus!”. Uma outra mulher, aparentemente indignada com aquilo tudo que estava acontecendo, retirou-se antes do “show” acabar.

O menino não desgrudava os olhos do caixão. Aquilo era real? Que tipo de teatro era aquele?

O homem que conduzia tudo subiu novamente ao palco e disse de forma ainda mais respeitosa (como se a voz do infeliz tivesse sido cuidadosamente treinada para atingir graus de respeitabilidade cada vez mais acentuados):


- Agora os familiares queiram por favor se dirigir ao crematório.


“Crema...crematró...”. O moleque nunca tinha ouvido essa palavra antes. Mas quando deixou o teatro em silêncio, viu que o tal crematrório não ficava ali, porque todo mundo da platéia foi entrando naqueles carros e partindo para algum lugar.
Francisco foi por primeiro, viu quando colocaram o caixão branco num carrão comprido com flores e mais flores por cima.
Quando os carros partiram, a rua ficou vazia. Como o coração do menino, que ninguém notou que estava ali.


Diego Gianni
(09/10/2011)
Última atualização em Sex, 25 de Maio de 2012 09:11
 


Página 227 de 232
Copyright © 2011 Acontece Curitiba. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por LinkWell.