Tragicômico



Não é preciso ser mergulhar o nariz nos livros de física para compreender o quanto o tempo é relativo. Você não precisa saber sobre Einstein nada mais que a imagem de um velhinho descabelado de olhos tristes e a língua marota em direção a lente da câmera.

Porque o tempo, senhoras e senhores, às vezes para. Quando você é quase atropelado e o carro freia a cinco centímetros da sua bacia.

Quando seus olhos vão de cima a baixo, procurando seu nome na lista de resultados do vestibular. Quando o tilintar do telefone te desperta na madrugada. Quando o médico atravessa o corredor e vem te avisar que a cirurgia foi...bem, a cirurgia foi...

Coisas assim fazem os segundos virarem minutos e vice versa. Dentro da sua percepção dos sentidos.

Foi o que aconteceu na capela do cemitério municipal. Eis o quadro: a família reunida em volta do caixão do Antero. Sorrisos amarelos, incluindo o do morto. Uma senhora gorda sentada no sofazinho preto em um dos cantos assoa o nariz com um lenço improvisado de papel higiênico. Uma cruz de latão barato com a imagem de Cristo enfeita e enfeia a parede. O clima é de velório.

E de repente, mancha o quadro um borrão de tinta: três homens encapuzados e armados entram na capela e dão voz de assalto.

E o tempo parou. A irmã de Antero cuspiu uma risada rouca, mescla de tosse com latido. A senhora gorda literalmente paralisou. Quando voltou a si, olhou de um por um dos familiares, implorando com os olhos debochados que alguém ali explicasse o que significava aquela brincadeira de mau gosto.

A viúva foi a primeira a perceber que não era piada. Não tinha como ser piada. Ali estavam três estranhos, encapuzados e armados, dando voz de assalto no momento mais doído de sua vida.


- Todo mundo quieto! Vão colocando bolsa e carteira aqui no chão!


O choro da tia de Antero, até então contido, veio à tona como um vulcão desperto. O primo Lúcio sentiu uma gorfada e sua bile subiu até a garganta. Aquilo não podia ser sério.

O choro da tia do morto irritou um dos bandidos.


- Bolsa e carteira! – explodiu ele. – Bolsa e carteira!


Verdade seja dita, somente um dos três patetas, no caso, o mentor da sórdida ideia de assaltar uma família em pleno velório!, era de fato um desalmado. Os outros dois não estavam nem um pouco a vontade com aquela situação. Não se atreviam a olhar para o caixão. Gregório, o mais baixo e atarracado deles, chegou ao cúmulo dos cúmulos de fazer o sinal da cruz com a pistola na mão assim que entrou na capela.

E era o desalmado que agora dava um sonoro tapa na cara da tia de Antero e mandava ela calar a boca.


- Ninguém se mexe! – gritou ele. – Todo mundo quieto pra gente vazar logo!


A trama toda levou sete minutos, um número cabalístico. Para a família, levou pouco mais de uma hora. O tempo parou naquela triste capela que ficou mais triste ainda.

Os três bandidos foram embora com a mesma rapidez com que chegaram. A senhora gorda estava desmaiada há alguns minutos. A sensação geral era de fraqueza, tremor, um gelo nos ossos. A exceção foi a tão mencionada tia de Antero, que desandou a rir descontroladamente.

Lágrimas jorravam de seus olhos e ela não conseguia parar de rir.
Bianco, o bonachão da família, ousou fazer graça.


- O coveiro se fodeu com a gorjeta.


Olhares de reprovação para Bianco. Babaca inconveniente. De todos, apenas Antero não julgou o comentário escroto.

É, os mortos não julgam.

Tampouco ajudam à senhora gorda a se recompor. Ou a tia histérica a sair da crise nervosa.

O velório prosseguiu. Quando fecharam à tampa do caixão, o morto (evidentemente) ainda sorria.

Porque a vida continua. E a morte também.


Diego Gianni
(05/11/2011)
Última atualização em Qui, 10 de Novembro de 2011 11:22
 


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