Cada um de nós tem uma história e várias estórias para contar mostrando, geralmente, o lado poético da sua escolha de carreira. Cabe a cada um e somente a si conhecer o verdadeiro motivo.
Mas eu não falo dos cozinheiros de hoje. Os que foram impelidos pelo modismo, pela mídia, pelo status que a profissão tem hoje. Falo sobre aqueles que tiveram a escolha, dos que seguiram uma paixão, dos que tinham outras opções, muitas vezes melhores, mais sofisticadas, mais rentáveis e infinitamente mais tranquilas.
Mas, como falar dos outros se eu mesmo disse que cabe a cada um conhecer a sua verdadeira história?
Então falo por mim e só por mim. Pode até ser que a minha história tenha semelhanças com a sua, mas personalizo-a apenas em meu nome.
Depois de um colégio tranquilo, onde tive sempre notas boas, fui guindado da vida normal por ter sido enganjado à força no Exército. Sim, a força, afinal eu nunca quis estar lá.
Ao contrário de outros serviços militares, pelo meu tamanho, 1,80m, sim foi essa a minha maior aptidão demonstrada fui retirado da vida civil e deixado quase dois anos fora dela.
Servi na Polícia do Exército em uma época de transição. Estávamos saindo de uma ditadura militar e dando os primeiros passos em direção à democracia. Como se a democracia que vivemos fosse para o povo e pelo povo. Tempos em que Lula era apenas um metalúrgico e não uma importante figura de poder.
Ao sair, entrei em um cursinho, afinal dois anos de estupidez emburecem qualquer um. Digo estupidez porque até hoje não encontro um sentido para o que fiz nessa época. Segurar um fuzil sem projéteis (balas) e ficar marchando feito um idiota não faz de nenhum Exército capacitado para defender uma nação. Ainda bem que nunca entramos em guerra. Apanharíamos até do Haiti se dependesse do que aprendi lá.
Feito o cursinho entrei em uma faculdade de odontologia. Não qualquer uma. Entrei na melhor da época. A Universidade de São Paulo. Foram seis aninhos de estudo onde, pela primeira vez, mexi em bocas alheias que não fossem de namoradas.
Nessa época eu desesperadamente já pensava em largar tudo e seguir uma paixão. Como guitarrista desde os seis anos, queria ser músico, mas vamos e venhamos, as chances de sucesso são tão incrivelmente difíceis, principalmente na época, que desisti de um sonho de adolescente mais que rapidamente, afinal já estava casado nessa época.
Poderia ter começado a narrativa contando que aos oito anos já me aventurava no fogão, meio que escondido, fazendo brigadeiros para comer escondido de minhas irmãs, que olhava minha mãe e minha avó fazendo os almoços e jantares familiares e curiosamente já me interessando pelos livros quase toscos que tinham elas. Um livro me deixava fascinado: O da Dona Benta. Acho que o li umas trinta vezes, para não ser exagerado. Até arrisquei algumas receitas. Que tem esse livro pode ver a receita de abacaxi com bala de hortelã que abre a edição de 1967. Que merda que ficou, lembro bem, hehe!!
Mas continuo a fase mais adulta e menos romanceada na minha cabeça.
Certo dia eu estava de plantão no serviço de traumatologia do Hospital Universitário quando deu entrada uma menina de sete anos que havia sofrido um acidente. Nesse acidente ela atravessou o para-brisa do carro em uma brecada e fraturou 16 ossos da face. Foram dezessete hora de cirurgia.
Ao sair, extenuado da sala de cirurgia e entrar no meu carro para voltar para casa, fiquei mais de uma hora chorando dentro dele. Chorei pela menina um pouco, mas chorei por mim muito mais. Eu não pertencia a esse caminho. Não estava em mim nenhuma paixão por ser um CD, apelido dos cirurgiões-dentistas.
Voltei para casa e cai na cama. Dormi mal, poucas horas, não pelo que eu tinha passado, mas sim pelo que havia por vir. Eu havia decidido largar tudo e precisava informar à família.
Não foi fácil. Explicar que o que você havia investido por anos, não só financeiramente, pois a odontologia é a faculdade mais cara que existe, mas grande parte da minha vida.
Feito o estrago, assumi o gerenciamento da loja da minha família, uma relojoaria tradicional, que já tinha mais de sessenta anos de existência.
Fui relojoeiro, gravador, meio ourives, gerente, vitrinista e tudo mais. Fiz cursos, me empenhei em ser o melhor que podia, trabalhei anos de domingo a domingo, fazendo o trabalho na loja e feiras de antiguidades.
Mas eu não estava feliz. Poderia ser chamado de inconstante, de inconsequente, de aventureiro, mas eu me chamava de frustrado. Não fazia o que gostava. Não estava satisfeito.
Sentei com meu pai e comuniquei minha saída. Disse-lhe: - Quero ser cozinheiro !
O rosto horrorizado dele me e persegue ainda hoje.
Em uma época em que essa profissão era considerada coisa de imigrantes, de pobres, e no pior dos preconceitos, de gay, entendia seu temor, mas segui adiante.
Fui ser sócio do Caracalla, um pequeno serviço de mamitex durante o dia e um paupérrimo bistrôzinho durante as noites.
Estudei tudo que eu podia. Tudo que eu encontrava. Tudo que o parco dinheiro permitia eu comprar. Contratamos um cozinheiro, Whaldemark, um alemão muito humilde, coisa rara, mas que era um gigante na cozinha. Aprendi muito com ele, mas aprendi que se vamos ensinar a alguém devemos fazer o melhor. Afinal o resultado é uma mostra da sua competência.
Anos depois, meu sócio, Edson Cordeiro, uma pessoa que não entendia nada de culinária, mas tinha o dinheiro necessário para abrir o negócio, mostrou-se irresponsável demais para que pudéssemos ficar juntos.
Sem muitas reservas, afinal o que eu ganhava eu tinha que sustentar a família, montei um pequeno serviço de entregas de almoços, jantares e lanches. Lembro bem da estreia, no carnaval de 1996 e depois de dois dias de misse on place fiquei olhando o telefone mudo tirando sarro da minha cara. Cinco pedidos em uma cidade com 300mil turistas.
Meu azar foi ter feito panfletos e eu, com ajuda de meu filho e esposa, espalhamos pelo bairro todo. Só que choveu muito. Foi quase um dilúvio e toda a panfletagem se foi com a água. Comemos, doamos, jogamos coisas estragadas fora, mas o pior foi ter sentido minha moral ir com a enxurrada.
E o caminho foi complicado. Fui personal Chef. Uma denominação que quase quer dizer cozinheiro desempregado. Fazia jantares, festinhas, casamentos, comandava churrasqueiras, etc. O que viesse eu aceitava.
Em um destes churrascos, em fins de 2007, uma pessoa se aproximou e fez um elogio à carne que estava sendo servida, mesmo porque quem tinha uma mínima noção sabia que os donos da festa eram muito mesquinhos e que o que serviam era carne de baixa qualidade, mas que nas mãos certas se transformaram em algo palatável.
Essa pessoa me fez uma proposta para que eu assumisse um restaurante que estava abandonado há cinco anos. Meus olhos brilharam. Vi uma oportunidade, uma nova chance de comandar uma cozinha de verdade.
Ao chegar ao local vi muito do meu sonho se transformar em trabalho escravo. Virei marceneiro, pintor, jardineiro, eletricista, encanador, designer. Foram muitos e muitos dias que dormi lá dentro sentado em uma cadeira e apoiando a cabeça em uma mesinha de praia. Acho que foram os únicos dias em que não estudei na vida. Virei trabalhador braçal. Nessa época pude me empenhar, pois meu filho havia se mudado porque entrou na mesma USP e eu havia me separado da minha esposa e, com isso, estava sozinho.
Quase dois meses depois estava quase pronto. Sim, "quase", por dois motivos: A reforma não termina nunca e o restaurante não tinha absolutamente nada dentro.
Sem dinheiro para encher as despensas e geladeiras, fui pedir empréstimo bancário. O legal é que fiz muitos gerentes darem muitas risadas e se divertirem com o meu pedido. Cartões, cheque especial, reservas, tudo já tinha sido consumido na reforma. Restava uma pessoa na face da Terra que tinha dinheiro para me ajudar: Meu genitor.
Ouvi um sonoro não. Esse não foi pelo simples fato de que ele achava que eu embarcava em mais um sonho. Ele não estava errado. Só que meu sonho desta vez era bom e nãoo pesadelo que ele imaginava.
Consegui comprar muitas coisas de uma casa-bar que estava fechando. Seis vezes, por favor, pedi a pessoa e ela para se livrar das coisas topou. Ponto pra mim que estava no lugar certo na hora certa. Pobre dele que via seu sonho desmoronar.
Fiz fichas em atacados, em indústrias alimentícias, fui conhecer pescadores, produtores agrícolas locais, entrei no movimento Slow Food para ter acesso a produtos orgânicos e especiais, conheci os chefs locais e com eles aprendi muito sobre o cliente local, sobre as melhores épocas de trabalho, sobre o preparo que antecedia as temporadas, etc, etc.
No dia primeiro de fevereiro de2008 o Qorthon abriu suas portas, depois de uma maratona de 36 horas fazendo ficahas técnicas. Minhas olheiras me denunciavam. Era uma sexta-feira e eu resolvi fazer um coquetel de inauguração. Comida e bebida de graça, salão e varanda chapados de gente, afinal começava o carnaval daquele ano e essa época é a mais cheia de turistas, perdendo apenas para o reveillon.
Animado com a perspectiva, não dormi nesse dia, emendando a noite da sexta com o sábado de carnaval. Foi uma loucura. Lembro-me de pouca coisa. Não tive tempo para guardar nada na memória, apenas que tive que retirar a golpes de cutelo a última carne preparada que ficou presa no freezer e dizer a um sem número de pessoas que encerrava o dia porque não tinha mais nada a servir. Incompetência de iniciante.
Segue-se um ano muito chuvoso e frio, mas as portas abertas e alguns eventos seguraram a barra.
Em setembro houve um concurso gastronômico do litoral e eu pude participar com uma terrina de lombo de porco e couve e levei o prêmio. Deu um bom impulso no Qorthon.
A prefeitura mantém na cidade um centro de estudos profissionalizantes. Passei a dar aulas esporádicas por lá. Apaixonei-me por ensinar algo pelo que eu era apaixonado. Mantenho isso até hoje.
Passei algumas situações complicadas, por exemplo, toda a comida que sobrava eu preparava e embalava em quentinhas e ia distribuir aos pobres coitados que viviam na praça central da cidade. Muitas vezes quase apanhei porque não havia o suficiente.
Passei a visitar uma creche e lá me divertir ensinando aquelas crianças a fazer o "beabá" da culinária. O problema é que a gente se apega à elas e elas nem sempre ficam o tempo suficiente que queremos. Muitas somem, de um dia para outro, e nosso coração fica muito apertado quando sabemos que foram transferidas, quando seus pais tiveram problemas, quando são espancadas e hospitalizadas. É muito difícil ficar indiferente e eu não consegui isso. Conflitei-me com a direção, que ainda hoje acho irresponsável e sai de lá.
A convite de uma grande amiga passei a frequentar um depósito de velhinhos. Sim, não posso chamar aquilo de asilo. Era depósito mesmo. Sobrevivia por ajuda de um centro espírita da cidade. A prefeitura nunca colocou um centavo por lá, mas soube desapropriar o local, sem ao menos perguntar onde aquela dúzia de pessoas, que um dia foram jovens e ativos, iriam. Novamente esse centro ajudou e arrumou um novo local, mas não havia mais como eu estar com eles. Para sanar essa distância, consegui contratar um motorista e uma perua Kombi e nas quintas-feiras o Qorthon virava um alegre bingo da terceira idade. Era uma delícia bolar o cardápio sempre levando em conta as necessidades de cada um. Parece difícil, mas a satisfação compensa o trabalho.
Acabou isso, não porque eu quis. Acabou porque nesses quatro anos essas maravilhosas pessoas que sorriam pra mim, mostrando mal feitas dentaduras, passaram para o outro lado. Só uma ainda insiste em ficar por aqui, mas meu grande amigo Savio a recolhei e lhe deu um lar. Santos ainda andam pela Terra.
Hoje tento desesperadamente convencer meus colegas daqui a entrarem em um projeto chamado Café da Manhã na Rua. Pesquisas mostram que ao começar o dia bem alimentado a violência diminui. Mas isso está ainda em projeto. Quem sabe com a baixa temporada eles não se animam a me ajudar.
Voltando aos atos menos altruístas...
Fui ajudar um colega e assumi ser sous-chef em um restaurante, a Taberna Basca, o melhor restaurante de comida espanhola e frutos do mar da região. Queria voltar a aprender algo diferente. Fiz tanta Paella que nem posso mais ve-las. O problema é que muitas vezes teus professores sabem menos que você. E isso te transforma em inimigo. Mas vamos tocando a toada.
Desta experiência surgiu um grande amigo e com ele montei um buffet. O Qorthon Buffet, ativo até hoje e com boas perspectivas pela frente.
Escrevi um livro. Há anos que quero fazer isso e agora ele está se tornando realidade. Logo estarei com um exemplar nas mãos. Não queria um simpleslivro dereceitas.Queriaum livro que,além das receitas, preparasseoleitorpara fazê-lascom perfeição.
Quero que fique pronto e com isso abrirei uma frente de cursos pelo Brasil. Torço para dar certa essa parte, pois adoro estar em contato com pessoas apaixonadas e que querem aprender. Eu adoro ensinar. Jamais me furtei de passar em detalhes uma receita.
Agora vivo em certa tranquilidade. Dou-me ao luxo de manter o Qorthon só nas temporadas e aproveito para reciclar-me nesse tempo ocioso, lendo, escrevendo, ensinando e cozinhando novas experiências. Adoro tentar e tentar e tentar. Uma paixão de ver os resultados e comê-los, sabendo que podem estrelar um novo menu para uma nova temporada.
Estava escrito, não nas estrelas, mas dentro de mim, desde que me vi olhando a Dona Cida cozinhando, a Dona Aida fazendo balas puxa-puxa, o seu Zé temperando suas carnes e eu, sentado no canto da cozinha lendo a Dona Benta. Deveria ser Santa Benta se ela existisse.
Pra que não sabe, Dona Benta é apenas o nome dado a um livro, usando um personagem do Monteiro Lobato. Ela nunca existiu. Só posso dizer que o que existe é o meu amor pelas panelas, pelo fogão, pela comida e pelo sorriso de quem a come.
E é por isso que eu virei cozinheiro.
Simplesmente por amor a mim mesmo.